ESSA
É A CONDIÇÃO DA HUMANIDADE...
Como
está escrito:Não há um justo, nem um sequer.
Não
há ninguém que entenda;Não há ninguém que busque a Deus.
Todos
se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis.Não há quem faça
o bem, não há nem um só.
A
sua garganta é um sepulcro aberto;Com as suas línguas tratam
enganosamente;Peçonha de áspides está debaixo de seus lábios;
Cuja
boca está cheia de maldição e amargura.
Os
seus pés são ligeiros para derramar sangue.
Em
seus caminhos há destruição e miséria;
Romanos
3:10-16
1
Timóteo 2
…4o
qual deseja que todas as pessoas sejam salvas e cheguem ao pleno
conhecimento da verdade. 5Porque
há um só Deus e um só Mediador entre Deus e o ser humano, Cristo
Jesus, homem. 6Ele
se entregou em resgate por todos, para servir de testemunho a seu
próprio tempo. …
A
saber: Se com a tua boca confessares ao Senhor Jesus, e em teu
coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás
salvo.
Visto
que com o coração se crê para a justiça, e com a boca se faz
confissão para a salvação.
Romanos
10:9,10
A
doutrina da depravação total situada na História
1.
Introdução
A
Depravação Total (DT) é o primeiro dos Cinco Pontos do Calvinismo.
O grande exegeta e reformador de Genebra – Calvino – versou,
categoricamente, acerca desta doutrina, e, através dela, iluminado
pelo Espírito Santo, enxergou a insuficiência do homem em escolher
a Deus, salvando a si mesmo da morte e do inferno. A DT está,
portanto, estritamente ligada ao monergismo,1 isto
é, à doutrina de que salvação é uma dádiva que o Senhor
concedeu graciosamente aos Seus eleitos, segundo o beneplácito de
Sua própria vontade. Em outras palavras, pode-se dizer que as
doutrinas da Predestinação e da Depravação Total andam de mãos
dadas.
A
doutrina que recebeu o nome de calvinismo, como bem nos exortou
Spurgeon, não foi criada por João Calvino. Este se baseou, sem
sombra de dúvidas, nos escritos de Agostinho, que por sua vez,
mergulhou profundamente na teologia paulina. Sabemos que Paulo
recebeu o Evangelho diretamente do Senhor Jesus Cristo, como um
nascido fora de tempo. O Apóstolo aos Gentios foi inspirado pelo
Espírito Santo em sua produção teológica, para que seus escritos
se compusessem às Sagradas Escrituras e, do mesmo modo, para que os
cristãos de todos os povos e épocas tivessem acesso à sua
explanação a respeito das doutrinas da graça.
Destarte,
impende ressaltar, ainda, que aquilo que chamamos de calvinismo é
justamente a retomada das doutrinas da graça, que outrora foram
encobertas pela doutrina romanista da salvação por obras. Com o
advento da Reforma iniciada por Lutero, o Cristianismo voltou a ter
um remanescente que bradava a máxima paulina presente em Romanos
1.17: “O justo viverá pela fé”. Todavia, ninguém, naquele
período da reforma, nem mesmo posteriormente, sistematizou com maior
excelência essas doutrinas como João Calvino o fez.
Isto
posto, esta claro que a DT não é apenas parte do ensino calvinista:
é uma doutrina essencialmente bíblica. Além disso, ao
observarmo-la, notamos que a mesma está explicitamente presente na
Igreja do primeiro século, sendo ensinada através das epístolas
escritas por aquele que foi o mais erudito autor do Novo Testamento:
o Apóstolo Paulo de Tarso.
2. A depravação total na
antropologia paulina
Paulo
utilizou sete termos para descrever os aspectos do homem
natural/decaído, são eles: alma (psychç); espírito (pneuma);
carne (sarx); corpo (sôma); coração (kardia); mente (nous); e
consciência (syneidçsis). Veremos abaixo a forma pela qual o pecado
afeta cada uma dessas partes, fazendo com que o ser humano, em sua
totalidade, seja depravado ao ponto de ser controlado pela intensa e
vibrante vontade de pecar.
Alma
(psych): este é o termo antropológico menos citado por Paulo;
existem 13 menções, apenas. Quando usado, psych refere-se
à vida humana. Em Romanos 2:9, Paulo vincula a alma humana à
prática do mal. No entanto, isto não quer dizer que a alma humana
seja má em si mesma, mas, por fazer parte do ser humano, está
diretamente envolvida na condição geral pecaminosa do homem. Já em
1 Coríntios 2.14, o termo psychikos (material,
natural) é utilizado como referência ao homem não regenerado,
contrastando com pneumatikos (espiritual).
Espírito
(pneuma): embora seu uso mais comum seja referente ao Espírito
Santo, pneuma, na teologia paulina, também é parte
inerente ao ser humano. Quando, em 1 Coríntios 2:11, o apóstolo
fala no “espírito do homem”, fica difícil de aceitar que o
homem recebe o pneuma após a conversão. Mais
coerente, é considerar que o pneuma está
desativado pela degeneração, e quem o reativa é o Espírito de
Deus, no processo de conversão/regeneração. Assim, podemos
entender pneuma como sendo a mais elevada
representação da natureza humana. Por si mesma, essa natureza não
é boa nem má; ela torna-se boa ou má através da influência
dominante. Sendo assim, o cristão regenerado tem a natureza sob
influência do Espírito Santo, tornando-se, por fim, bom. Em
contrapartida, o não regenerado continua escravo do pecado, sendo
mal em sua essência depravada.
Coração
(kardia): Paulo utiliza kardia para descrever o
local onde nasce a concupiscência dos homens e sua insensatez
(Romanos 1:21 e 24). Não é o coração que é insensato, é o
homem, com a sua degeneração moral, que o faz proceder deste modo.
Para Paulo, em alguns casos, o coração é o centro das emoções,
e, em outros, significa a pessoa, em sua totalidade. Ele dirá,
ainda, que é no coração que recebemos a iluminação para
enxergarmos, através de Cristo, a glória de Deus (2 Coríntios 2:6
e Efésios 1:18).
Mente
(nous): este termo é sempre associado, nos escritos paulinos, ao
homem. Diferentemente dos gregos, que faziam separação entre a
mente e o restante do corpo como se ela fosse uma faculdade especial.
Paulo utiliza nous de acordo com a tradição
hebraica, abrangendo o homem como um todo, sem destacar o intelecto
das demais partes. Novamente, nous não é boa e nem
má em si mesma; seu posicionamento moral vai sofrer a influência do
que for predominante – a carne ou o Espírito Santo. No caso dos
crentes, suas mentes não são mais vis e cegas como a dos incrédulos
(2 Coríntios 4:4), mas, sim, iluminadas e renovadas (Romanos 12:2 e
2 Coríntios 4:6).
Consciência
(syneidçsis): esta palavra pode ser definida como o conhecimento de
uma ação acompanhado de uma reflexão. É uma palavra que apresenta
o homem como um ser racional. A consciência sabe o que é certo.
Todo homem, então, é extremamente ciente de seus atos. Em 1 Timóteo
4:2, Paulo fala da consciência “cauterizada” entre aqueles que
são enganados pelos que ensinam doutrina de demônios. O fato de o
homem saber o que é certo e não fazê-lo explicita a sua natureza
degenerada.
Carne
(sarx): este é o termo mais empregado pelo apóstolo Paulo, e,
também, o mais variado em seu sentido. Contudo, queremos frisar
apenas o conceito antropológico, que remonta à fraqueza humana,
devido à sua natureza terrena. Sarx e pecado estão ligados na
teologia paulina ao ponto de o apóstolo a definir como fonte dos
maus desejos (Gálatas 5:16). Indo mais além, a carne é uma
produtora de pecados; e, em Gálatas 5:19, temos ideia dos seus
produtos. Num contexto não-cristão, sarx é
predominante e conduz à morte (Romanos 7:5).
Corpo
(soma): finalizamos essa análise da antropologia paulina
com soma. Aqui, deve-se fazer distinção entre corpo e
carne. Sarx não sofre transformação; o corpo, sim, sendo liberto
em Cristo da sua influência carnal. Este é o sentido da
santificação na vida do cristão. A finalidade de soma é
ser morada do Espírito Santo (1 Coríntios 6:19). A mudança de um
corpo carnal para um corpo glorificado é progressiva, do mesmo modo
que ocorre com a mente. Todavia, o corpo daquele que não for
regenerado por Cristo será destinado à morte. Como está escrito:
“Quem me livrará do corpo desta morte?” (Romanos 7:24). Por
conseguinte, segundo Paulo, o homem natural não é espiritual. Essa
é uma deficiência que só pode ser suprida pelo poder e atuação
do Espírito Santo. Não há nada em nenhuma das epístolas paulinas
– ou em algum outro ensino bíblico -, que destoe da DT.
O
pecado, quando entrou no mundo por intermédio de Adão, alcançou a
todos os indivíduos, e a exposição clássica acerca disso se
encontra nos três primeiros capítulos de Romanos. No capítulo 5,
versículo 12, do livro anteriormente citado, lê-se: “Portanto,
como por um homem entrou o pecado no mundo, e pecado a morte, assim
também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram”.
Destarte,
não restam objeções de que Paulo ensinou – inspirado pelo
Espírito Santo – que a raça humana fora inteiramente afetada pelo
pecado de Adão.
3.
A depravação total ensinada na patrística
Patrística
é o nome dado ao período correspondente ao vivido pelos “pais da
igreja”. Compreende-se como os cinco primeiros séculos da era
cristã. Embora seja um período no qual a igreja triunfou e expandiu
suas fronteiras – mesmo passando por sucessivas perseguições –,
e também tenha sido uma época na qual viveram notáveis pensadores
ortodoxos, o período patrístico foi marcado, também, por muitas
confusões doutrinárias, advindas do contexto plurirreligioso na
qual estava mergulhado.
Íris,
Serápis e Cibele eram divindades bastante populares do Império
Romano; e Mitras tinha o apreço de boa parte dos soldados imperiais.
Sobre este assunto, Kelly [2009, p. 9] pronuncia-se categoricamente,
vejamos:
O
sincretismo era o produto desse acúmulo de religiões; os deuses de
um país eram identificados com os de outro, e havia um movimento
indiscriminado de fusão de várias seitas e de empréstimos de
ideias entre elas.
A
conexão entre nosso pecado e o de Adão não era ainda bem exposta
entre os pais da igreja. Talvez, as maiores e únicas contribuições
sobre a DT sejam as de Tertuliano e Agostinho. Para Tertuliano, o
pecado tornou-se um elemento natural do homem, presente desde o
nascimento – condição hereditária –, abrangendo toda a raça
humana. Esse é o primeiro indício da doutrina do pecado original,
pois, em última análise, essa herança vai chegar até Adão e Eva.
O
Traducionismo2 de
Tertuliano foi defendido, podemos assim dizer, isoladamente por ele.
Sua teologia ia de encontro à ideia do pecado inato, muito popular
naquele contexto. Tertuliano afirmava que a propagação da alma
envolvia a propagação do pecado. Isto quer dizer, portanto, que no
momento da concepção, a alma se origina através de um processo
natural. O ensino de que o homem já nasce pecador e depravado é o
mesmo utilizado pelo salmista Davi em Salmos 51:5: “Eis que em
iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe”.
Contudo,
é na teologia de Agostinho que encontramos a DT mais detalhadamente
descrita. Agostinho, de início, produziu textos para refutar o
dualismo dos maniqueístas (grupo do qual chegou a fazer parte nos
primeiros anos de sua conversão). Porém, a sua mais valiosa
contribuição é aquela voltada para refutação do pelagianismo. A
grande controvérsia entre Pelágio e Agostinho envolvia o
livre-arbítrio e o pecado original.
Entretanto,
Pelágio não é o principal adversário do Bispo de Hipona. Dentre
os defensores das teses heréticas estavam Celéstio e Juliano de
Eclano. A estes, Agostinho também confronta ferozmente. Mas em que
consistia o crasso erro pelagiano?
Para
Pelágio, a humanidade não foi afetada pelo pecado de Adão,
considerando que este foi o único prejudicado pelo seu delito. De
acordo com essa corrente herética, o primeiro homem foi criado
neutro, com volição livre para escolher entre o bem e o mal. Adão,
segundo Pelágio, já estava condicionado a ser um reles mortal,
sendo assim, a morte não foi uma consequência desastrosa do seu
pecado. O mesmo acreditava, ainda, que todos os homens nascem com a
mesma condição de neutralidade, sem qualquer herança adâmica
negativa.
Desta
forma, a humanidade estaria, então, isenta de culpa e poluição. A
diferença do primeiro homem para os demais seria que Adão não
tivera o exemplo que os demais homens tiveram; daí o conceito de
livre-arbítrio. Nota-se, claramente, que o pelagianismo desqualifica
a soberania e a graça divina, pois, nesta doutrina, o homem, em sua
liberdade, pode tanto aceitar o favor de Deus para a sua alvação
como rejeitar. Dentro de suas próprias capacidades, o homem poderia
voltar do mal para o bem, isto é, de uma condição de pecador para
uma condição de santo, sem que necessitasse de qualquer intervenção
divina.
Não
há, portanto, ação do Espírito Santo e da cruz neste processo,
haja vista que a mesma é reduzida apenas a um bom exemplo de
obediência à Palavra que a humanidade deveria seguir.
Agostinho,
mergulhando na teologia paulina, sobretudo na Epístola aos Romanos,
desenvolve a DT como sendo uma doutrina indispensável ao
cristianismo. Combatendo a neutralidade pelagiana, ele afirma que o
homem perdeu o livre-arbítrio quando o pecado entrou no mundo por
meio de Adão. Após a catástrofe do Éden, a humanidade herda o
pecado natural, que escraviza o homem em seu desejo de querer pecar
mais e mais.
Sendo
assim, o pecado priva o homem de escolher aquilo que é inerentemente
bom (privatio boni), o que não significa, entretanto, que o
homem perdeu toda sua capacidade de fazer escolhas. Em diversas
ocasiões o pecador escolhe entre diversas alternativas. A única
incapacidade do homem degenerado é escolher não mais pecar. O
pecado é uma gangrena que aprisiona o ser humano. Foi ele o grande
responsável pela morte, pois, para Agostinho, Adão era detentor da
imortalidade, antes da queda. E isso foi transmitido a todos que se
seguiram. Sobre essa transmissão da natureza pecaminosa, escreveu
Berkhof [1992, p.122]:
Através
do vínculo orgânico entre Adão e seus descendentes é que aquele
transmite a eles a sua natureza caída, juntamente com a culpa e a
corrupção que lhe segue o rastro. Agostinho concebe a unidade da
raça humana não de modo federal, e sim, realista. Toda a raça
humana estava germinalmente presente no primeiro homem, pelo que
também ela realmente pecou em Adão.
Temos,
desta forma, em Agostinho, a relação entre a DT e a Soberana Graça,
dando todo o crédito a Deus no processo de salvação e
santificação. A renovação da vontade humana é uma obra exclusiva
de Deus, pois, se não fosse o Senhor quem tomasse a iniciativa e nos
redimisse por meio de Jesus Cristo, nunca estaríamos livres do
domínio do pecado.
Neste
contexto, é preciso entender o conceito de “graça irresistível”
como algo que muda a vontade dos homens, e não que se impõe sobre
ela. O ensino agostiniano é o de que a graça não viola a
característica do ser humano, como se este não fosse um agente
livre, mas, sim, que ela reconstrói o livre-arbítrio, perdido na
Queda, ao ponto que o pecador regenerado agora é capaz de voltar-se
para Deus.
A
graça não é concedida porque alguém crê, mas, sim, para que se
creia. Numa perspectiva escatológica do ensino de Agostinho,
Gonzales [2002, p.213] preleciona a respeito do livre arbítrio:
Quando
somos redimidos, a Graça de Deus passa a atuar em nós, levando-nos
do estado miserável em que nos encontramos para um estado novo, em
que a nossa liberdade é restaurada, tanto para pecar como para não
pecar. No céu, por fim, teremos somente liberdade para não pecar.
Como no caso anterior, isto não quer dizer que não teremos
liberdade alguma. Ao contrário, na vida celestial, continuaremos
tendo diversas alternativas, mas nenhuma delas será pecado.
A
graça que atua no homem depravado e o santifica é concedida a todo
aquele que foi por Deus predestinado para a salvação. Isso
corrobora o que foi dito anteriormente: Depravação Total e
Predestinação não podem ser desassociadas uma da outra; elas
caminham intrinsecamente juntas pelas veredas da sã doutrina.
Embora
Agostinho seja um dos teólogos mais eminentes, tanto para o segmento
protestante quanto para o romanista – sendo canonizado pela Igreja
Católica, chegando até mesmo a receber o título de Doutor da
Igreja – o segmento católico rejeitou sua soteriologia e
antropologia, preferindo adotar um viés moderado, que chega a
confundir-se com o semi-pelagianismo.
Os
ensinos de Pelágio foram considerados heréticos em mais de um
sínodo, contudo, foi rechaçado somente no Concílio de Éfeso, no
ano de 431. Surge, então, uma linha intermediária entre
pelagianismo e agostinianismo. A esse respeito, disserta Bekhof
[1992, p. 125]:
O
semi-pelagianismo fez a fútil tentativa de evitar todas as
dificuldades dando lugar tanto à graça divina como ao
livre-arbítrio humano como fatores coordenados da renovação do
homem, e alicerçando a predestinação sobre a fé e a obediência
previstas. Não negava a corrupção humana, mas considerava que a
natureza do homem fora enfraquecida ou enfermada, e não fatalmente
prejudicada pela Queda. A natureza humana caída retém certo
elemento de liberdade, em virtude do que pode cooperar com a graça
divina. A regeneração é o produto conjunto de ambos os fatores,
todavia seria realmente o homem, e não Deus, quem dá começo à
obra.
As
ideias semi-pelagianas se espalharam rapidamente, e, mesmo sendo
também condenadas pelo Sínodo de Orange, em 529, a defesa do
monergismo agostiniano nunca foi abraçada pelo romanismo, que omitia
em seus sínodos a predestinação e a graça irresistível. No
entanto, seria um exagero afirmar que o catolicismo é semi-
pelagiano, pois em sua teologia há, indubitavelmente, uma maior
contribuição de Agostinho. Considerando que seja possível rotular
a teologia católica, poderíamos chama-la de semi-agostiniana.
4.
A depravação total ensinada pelos reformadores
Quando
Lutero, no século XVI, deu início ao que ficaria conhecido por
Reforma Protestante, ele foi completamente impactado pelo seguinte
verso, presente em Romanos 1:17: “O justo viverá pela fé”. Foi
com esta palavra que o “papado” começou a morrer dentro daquele
monge alemão, que também havia se tornado um excelente professor de
exegese, em Wittenberg.
A
justificação pela fé, para Lutero, era o resumo de toda a doutrina
cristã. Os méritos humanos não são capazes de tornar nenhum ser
humano justo diante de Deus. Lutero acreditava que a DT havia tomado
o homem na queda. Na sua antropologia, afirma que nós somos
possuidores de corpo e alma vivente, sendo que o pecado afetou tanto
um como o outro. Para o reformador alemão, portanto, já nascemos
com os desejos maus enraizados em nossos corações. Essa foi uma das
grandes controvérsias que Lutero teve com o humanista Erasmo de
Roterdã.
Igualmente,
a teologia luterana contemplava um homem que peca por já ser um
pecador, e não que se tornava à medida que cometia os seus delitos.
Lutero explica, ainda, que o pecado original está encravado em cada
pessoa, de forma que não podemos nos desatrelar dele. Por esta razão
é que o pecado é pessoal e natural. O ser humano é um ser
corrompido, envenenado e pecaminoso. Os efeitos contidos na queda e a
herança que ela relegou a todos os humanos fizeram com que Lutero
escrevesse a seguinte pérola:
Assim,
Adão e Eva eram puros e saudáveis. Tinham uma visão tão aguçada
que podiam enxergar através de uma parede e ouvidos tão bons que
podiam ouvir qualquer coisa a 3 km de distância. Todos os animais
eram-lhes obedientes: até mesmo o sol e a lua sorriam para eles. Mas
depois o diabo veio e disse: “Vocês se tomarão como os deuses”,
e assim por diante. Eles pensaram: “Deus é paciente. Que diferença
faria uma maçã?”. E num estalar de dedos ela estava diante deles.
E isso ainda nos está pendurando a todos pelo pescoço.3
Embora
esta citação possua linguagem especulativa quanto às façanhas
físicas do homem antes do lapsus,4 ela
ilustra muito bem o entendimento luterano acerca da DT. A sua
concepção de depravação está atrelada com o seu ensino acerca da
justificação.
Desta
forma, para o reformador, Deus aceita a justiça de Cristo, por isso,
mesmo os nossos pecados não sendo removidos, eles não são mais
denunciados contra nós. Esta é a clássica diferença entre o
“tornar justo”, defendido por Agostinho, e o seu “declarar
justo”. A justificação ocorre pela fé, somente, e quem a recebe
passa a ser, ao mesmo tempo, justo e pecador. Sobre este paradoxo,
Lutero afirma:
Somos
verdadeira e totalmente pecadores, com respeito a nós mesmos e ao
nosso primeiro nascimento. Inversamente, já que Cristo nos foi dado,
somos santos e justos, totalmente. Então, de diferentes aspectos,
somos considerados justos e pecadores ao mesmo tempo.
Assim,
podemos concluir que Lutero aniquilou a teologia romanista da
salvação meritória, ao doutrinar que a justificação se dá
somente pela fé. Também podemos celebrar o seu legado na luta
contra a falsa doutrina do livre-arbítrio.
Entendida a
capacidade vinda de Deus para tomar decisões ordinárias, resta
evidente que, para cumprirmos as responsabilidades no mundo, o
livre-arbítrio permanece. O que ele é incapaz de realizar é fazer
com que o homem salve a si mesmo. Nesse sentido, o livre-arbítrio
está totalmente corrompido, tornando-se, assim, escravo do pecado e
do próprio Satanás. Essa vontade escravizada nos faz desejar o que
é mau. Apenas com o auxilio da Graça somos libertos. A tragédia da
existência humana se resume no fato de que o homem não regenerado
se considera livre, e, deste modo, se entrega cada vez mais àquilo
que o aprisiona. Esse trágico quadro que Lutero pintou resume o seu
ensinamento a respeito da DT.
Outro
reformador, Ulrico Zuínglio, contemporâneo de Lutero, foi quem
levou os baluartes da reforma para a Suíça. Ofuscado pelo
reformador alemão, e também por João Calvino, muitos desconhecem o
legado teológico de Zuínglio. Este não foi tão brilhante ao ponto
de escrever algo semelhante às Institutas, porém, a sua militância
em prol da Reforma e sua destreza em defendê-la e divulgá-la, mesmo
sob o risco iminente de morte, faz com que o mesmo seja um notável
personagem da historiografia protestante.
Tendo
pequenas diferenças entre luteranos e calvinistas, Zuínglio também
é adepto à predestinação, da justificação pela fé, da
suficiência das Escrituras e, obviamente, considerava os seres
humanos totalmente corrompidos. Para ele, o maior dos pecados era a
idolatria, e o homem, em sua DT, estava completamente mergulhado nela
– a idolatria aqui pode ser definida como atribuir às criaturas
aquilo que pertence ao Criador.
Zuínglio
via na reforma uma saída para a idolatria. Os pecados dos homens são
tão fortes que estes corrompem até a adoração. Segundo afirmava,
é impossível confiar em Deus e, ao mesmo tempo, nos santos, pois,
ou se ama e se apega a criaturas, ou se ama e confia no Criador.
Aqui, enxergamos a DT conduzindo a humanidade a desobedecer ao
decálogo que, enfaticamente, proíbe a adoração a outros deuses.
No
entanto, o grande sistematizador da DT é o francês João Calvino,
conhecido por sua vasta produção literária e, sobretudo, por
aquela que talvez seja a maior obra teológica do segmento reformado:
“As Institutas da Religião Cristã”, escrita quando tinha apenas
26 anos de idade, e que foi revisada por ele próprio,
posteriormente. Entretanto, é evidente que a literatura calvinista
não se resume às Institutas. Ele produziu, também, catecismos, uma
breve confissão de fé e diversos comentários bíblicos.
Sobre
o relato da Queda, por exemplo, em Gênesis 3, Calvino registrou:
Neste
capítulo, Moisés explica que o homem, depois de ter sido enganado
por Satanás, se rebelou contra o seu Criador, tornou-se totalmente
mudado e degenerado, a ponto de a imagem de Deus, no qual ele tinha
sido formado, ter sido destruída. Ele, então, declara que o mundo
inteiro, que tinha sido criado para o bem do homem, caiu junto com
ele da sua posição primária, e que neste estado muito de sua
excelência natural foi destruída.5
Esta
degeneração fez com que os homens ficassem alienados em relação a
Deus. A figura que Calvino mais gosta de usar para ilustrar esta
alienação é a do labirinto, afirmando que, em razão do pecado, a
humanidade encontra-se perdida nesse labirinto. Embora a imagem de
Deus ainda se fizesse presente no ser-humano, ela foi completamente
deteriorada/desfigurada. Por causa dessa desfiguração, o homem não
é capaz de caminhar na direção da divindade e, por isso, mergulha
no erro constante de fabricar ídolos. Nesse ponto, tal como
Zuínglio, Calvino associa a idolatria à DT.
A DT levou a
Calvino a estudar todos os aspectos da redenção em Cristo. Só que,
antes de estudar a redenção, era necessário conhecer o motivo pelo
qual Cristo precisou habitar neste mundo e morrer na cruz. Afinal, do
que devemos ser salvos? Estes questionamentos levaram-no ao seguinte
comentário:
Pois,
a menos que percebamos nossa própria miséria indefesa, nunca
saberemos o quanto precisamos do remédio que Cristo traz, nem
viremos a ele com o amor ardoroso que lhe devemos. […] Para
conhecer a verdadeira essência de Cristo, deve cada um de nós
examinar-se cuidadosamente, e cada um deve saber-se condenado até
ser vindicado por Cristo. Ninguém está isento. O profeta inclui a
todos. Se Cristo não tivesse trazido ajuda, toda a raça humana
pereceria.6
A
DT em Calvino faz com que o pecado de Adão seja o nosso pecado, e,
nisso, ele difere de Zuínglio, colocando as crianças sob essa
sentença, culpadas por carregarem nelas mesmas a “semente do
pecado”, mesmo que essa semente não tenha florescido. Diante de
tal situação, a única alternativa é Cristo, e, neste sentido, Ele
é a verdadeira Boa-Nova e esperança palatável para os homens
caídos.
De
acordo com Calvino, o pecado não é simplesmente o nome para os atos
perversos que cometemos; antes, é a direção e a inclinação da
própria natureza humana em sua condição decaída. Cometemos pecado
porque somos pecadores. O pecado consiste tanto na perda da retidão
original (privação) quanto na propensão poderosa de transbordar
todo tipo de mal e delito específico (depravação). A essência do
primeiro pecado de Adão, repetido em graus diversos em todos os seus
descendentes, é o orgulho, a desobediência, a descrença, todos os
quais resultam em ingratidão. [GEORGE, 1994, p.214].
Os
escritos de Calvino não têm a intenção de nos deixar em completo
desespero. Ele aponta para a nossa miserabilidade, para depois
anunciar a redenção em Cristo. Assim, prepara a mensagem da
salvação, pois, para recebermos as bênçãos do Senhor, faz-se
necessário termos a noção de nossa incapacidade e pobreza
espiritual.
5.
A depravação total ensinada pelos puritanos
O
Puritanismo foi um movimento que surgiu na Inglaterra, no século
XVI, e que teve extensão no século XVII. Este movimento ambicionava
purificar a Igreja Anglicana de todo o seu aparato que ainda continha
a influência do catolicismo. Eles entendiam que a Igreja Inglesa
deveria tomar os moldes das congregações reformadas do continente.
Perseguido em seu país, muitos rumaram para o continente americano,
formando as Treze Colônias, que mais tarde se tornariam a poderosa
nação dos Estados Unidos da América.
Em
meio aos muitos assuntos tratados acerca deste tema, C. S. Lewis se
pronunciou:
Devemos
imaginar estes Puritanos como o extremo oposto daqueles que se dizem
puritanos hoje, imaginemo-los jovens, intensamente fortes,
intelectuais, progressistas, muito atuais. Eles não eram avessos à
bebidas com álcool; mesmo à cerveja, mas os bispos eram a sua
aversão’. Puritanos fumavam (na época não sabiam dos efeitos
danosos do fumo), bebiam (com moderação), caçavam, praticavam
esportes, usavam roupas coloridas, faziam amor com suas esposas, tudo
isto para a glória de Deus, o qual os colocou em posição de
liberdade. (…) [Os primeiros puritanos eram] jovens, vorazes,
intelectuais progressistas, muito elegantes e atualizados … [e] …
não havia animosidade entre os puritanos e humanistas. Eles eram
frequentemente as mesmas pessoas, e quase sempre o mesmo tipo de
pessoa: os jovens no Movimento, os impacientes progressistas exigindo
uma “limpeza purificadora”.7
Dentre
o maior legado teológico dos Puritanos, a Confissão de Fé de
Westminster talvez seja o maior. Por serem calvinistas, eles estavam
de acordo com o ensino da DT. Estes eram homens muitos piedosos e
notáveis, no entanto, há que se ressaltar que Richard Baxter, John
Owen e Jonathan Edwards eram mentes que, indiscutivelmente, estavam
acima da média, podendo ser considerados os teólogos de maior
destaque entre toda a história do puritanismo. Para não soar
redundante, foquemos no entendimento de Edwards a respeito da
transmissão do pecado, Berkhof [1992, p. 142] explica a posição
adotada por Edwards:
Estamos
ligados a Adão como os ramos estão à árvore e, em conseqüência,
o pecado dele também é o nosso, sendo-nos atribuído como tal. Essa
teoria não lhe é peculiar, porém. E muito favorecida entre os
luteranos, sendo igualmente difundida por eruditos reformados como H.
B. Smith e W. G. T. Shedd. Alguns teólogos da Nova Inglaterra, como
Woods é Tyler, defenderam a teoria de Placeu da imputação mediata.
Por meio de sua conexão natural a Adão, o homem herda a depravação
moral, e isso lhe é atribuído como culpa, tomando- o digno da
condenação.
Passaremos,
agora, a analisar a presença da DT no conteúdo das confissões de
fé reformadas e, assim, encerrarmos o assunto com a certeza de que
esta doutrina está em ampla conformidade com a ortodoxia,
ressaltando o perigo de que uma antropologia que não leve em
consideração a DT não é uma antropologia fundamentada nas
Escrituras.
6. A depravação total nas confissões
reformadas
• Confissão Belga, 1561, artigo
14:
Cremos que Deus criou o homem do pó da terra1, e
o fez e formou conforme sua imagem e semelhança: bom, justo e santo,
capaz de concordar, em tudo, com a vontade de Deus. Mas, quando o
homem estava naquela posição excelente, ele não a valorizou e não
a reconheceu. Dando ouvidos às palavras do diabo, submeteu-se por
livre vontade ao pecado e assim à morte e à maldição3. Pois
transgrediu o mandamento da vida, que tinha recebido e, pelo pecado,
separou-se de Deus, que era sua verdadeira vida. Assim ele corrompeu
toda a sua natureza e mereceu a morte corporal e espiritual4.
Tornando-se ímpio, perverso e corrupto em todas as suas práticas,
ele perdeu todos os dons excelentes5, que tinha recebido de Deus.
•
Catecismo de Heidelberg, 1563, questão 7:
De
onde vem, então, esta natureza corrompida do homem? Resposta: Da
queda e desobediência de nossos primeiros pais, Adão e Eva, no
paraíso. Ali, nossa natureza tornou-se tão envenenada, que todos
nós somos concebidos e nascidos em pecado. (1) Gn 3; Rm 5:12,18,19.
(2) Sl 51:5; Jo 3:6.
• Segunda Confissão Helvética,
1566, artigo 8:
Por
pecado entendemos a corrupção inata do homem, que se comunicou ou
propagou de nossos primeiros pais, a todos nós, pela qual nós –
mergulhados em más concupiscências, avessos a todo o bem,
inclinados a todo o mal, cheios de toda impiedade, de descrenças, de
desprezo e de ódio a Deus – nada de bom podemos fazer, e, até,
nem ao menos podemos pensar por nós mesmos. Além disso, à medida
que passam os anos, por pensamentos, palavras e obras más,
contrárias à lei de Deus, produzimos frutos corrompidos, dignos de
uma árvore má (Mat 12,33 ss).
•
Cânones
de Dort, 1619, Capítulo 1:
Todos
os homens pecaram em Adão, estão debaixo da maldição de Deus e
são condenados à morte eterna. Por isso Deus não teria feito
injustiça a ninguém se Ele tivesse resolvido deixar toda a raça
humana no pecado e sob a maldição e condená-la por causa do seu
pecado, de acordo com estas palavras do apóstolo: “… para que se
cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus… pois
todos pecaram e carecem da glória de Deus…”, e:”…o salário
do pecado é a morte…” (Rom. 3:19,23; 6:23).
•
Confissão
de Fé de Westminster, 1647, capítulo 6:
I.
Nossos primeiros pais, seduzidos pela astúcia e tentação de
Satanás, pecaram, comendo do fruto proibido. Segundo o seu sábio e
santo conselho, foi Deus servido permitir este pecado deles, havendo
determinado ordená-lo para a sua própria glória. Gen. 3:13; II
Cor. 11:3; Rom. 11:32 e 5:20-21.
II.
Por este pecado eles decaíram da sua retidão original e da comunhão
com Deus, e assim se tornaram mortos em pecado e inteiramente
corrompidos em todas as suas faculdades e partes do corpo e da alma.
Gen. 3:6-8; Rom. 3:23; Gen. 2:17; Ef. 2:1-3; Rom. 5:12; Gen. 6:5;
Jer. 17:9; Tito 1:15; Rom.3:10-18.
III.
Sendo eles o tronco de toda a humanidade, o delito dos seus pecados
foi imputado a seus filhos; e a mesma morte em pecado, bem como a sua
natureza corrompida, foram transmitidas a toda a sua posteridade, que
deles procede por geração ordinária. At. 17:26; Gn. 2:17; Rm.
5:17, 15-19; ICo. 15:21-22,45, 49; Sl.51:5; Gn.5:3; João3:6.
Referências
bibliográficas
BEEKE,
Joel R. Harmonia das Confissões Reformadas. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2006.
BERKHOF,
Louis. A História das Doutrinas Cristãs. São
Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,1992.
CALVINO,
João. As Institutas. São Paulo: Volume 1, Editora
Cultura Cristã,2006.
EUSÉBIO. História
Eclesiástica. São Paulo: Editora Novo Século.
2002.
GONZÁLEZ, Justo L. Uma História Ilustrada do
Cristianismo. São Paulo: Volumes 1. Edições Vida Nova, 2002.
GEORGE,
Timothy. Teologia dos Reformadores. São Paulo:
Edições Vida Nova, 1994.
HANKO, Herman. Retratos de Santos
Fiéis. Dublin. Firelandy Missions.2013.
KELLY,
J.N.D. Patrística. São Paulo: Edições Vida Nova,
2009.
LUTERO,
Martinho. Nascido Escravo. São José dos Campos-SP:
Editora Fiel, 2007.
RIDDERBOS,
Herman. A Teologia do Apóstolo Paulo. São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 2004.
_________________________________________
1Monergismo,
um termo derivado da expressão grega “trabalhar sozinho”,
indicando que a Salvação é uma obra exclusivamente divina, sem
ajuda do homem. Seu oposto é o Sinergismo (trabalhar em
conjunto).
2O
traducionismo ensina que a alma de um homem é dada a ele junto com
seu corpo pelos seus pais e não é especialmente criada por Deus no
momento da concepção.
3Citado
por Timothy George em Teologia dos Reformadores.
4Do
latim: queda.
5CALVINO,
João. Commentary on Genesis.
(http://www.ccel.org/ccel/calvin/calcom01.html).
6Comentário
de Isaías 53:6.
https://teologiabrasileira.com.br/a-doutrina-da-depravacao-total-situada-na-historia/
POR
FAVOR, COMPARTILHE ESTA MENSAGEM COM TODOS(AS) QUE VOCÊ CONHECE.
OBRIGADO.